Vamos lá. A maioria das pessoas LGBTQIA+ sabem que sair do armário é um momento delicado independente da família que você tem. Não temos como prever as reações. Mas, para além disso, é um momento que vai mudar por completo a sua vida. Não temos como prever como vamos nos sentir. É um momento único. Não deveria ser assim. Mas, infelizmente, ainda é. “Alguém Avisa?” (“Happiest Season”) levanta essa narrativa de uma forma peculiar. Estamos cansadas da mesma história de personagem que ainda está no armário e o filme gira em torno disso? Talvez. Mas algumas ainda são necessárias. E a história de Harper Caldwell (Mackenzie Davis) é um exemplo disso.
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A questão de Harper não é apenas estar no armário, mas sobre o momento de se assumir. Para algumas pessoas pode ser natural, algumas pessoas estão prontas para isso e nem pensam tanto sobre o assunto. Harper não estava preparada. “Alguém Avisa?” começa nos apresentando um jovem e apaixonado casal. Harper e Abby (Kristen Stewart) vivem juntas em seu mundinho, não existe dúvidas sobre o sentimento de uma pela outra. Mas Abby nunca conheceu a família da namorada. E o momento em que isso acontece é, no impulso, durante o Natal em família. Mas para a família de Harper, ela é solteira e… hétero.

É preciso deixar claro que Harper não é inocente dos seus erros e eles precisam ser discutidos, mas também é necessário entender o outro lado: Harper Caldwell não é a vilã da história. As suas ações não são intencionais, querendo ferir o próximo, mas sim são ações de medo de uma pessoa que cresceu em um ambiente conservador, que ela não tinha liberdade para explorar sua própria sexualidade. E ela é um ser humano, com imperfeições, e que vai errar. E encurralar a namorada em uma família que não sabia da existência dela é definitivamente um erro, mas necessário para a trama da comédia romântica clichê, não é mesmo?
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Viver duas vidas não é algo fácil. Quando mais jovem, Harper acusou a namorada de ser lésbica para se defender. Ela precisou criar uma barreira e, consequentemente, afastar (e até mesmo machucar) outras pessoas para conseguir sobreviver. Morar longe da pressão da família fez com que ela conseguisse construir uma vida, sem precisar se preocupar com o julgamento de pessoas que esperam sua perfeição. O fato dela ser lésbica não a diminui, mas ao mesmo tempo ela sabe que os olhares serão diferente e ela cresceu necessitando a aceitação da família, ser querida pelas pessoas que ela mais ama, e esse é um dilema vivido por milhões de pessoas e ela não estava preparada para enfrentar isso.
Nem todos tem a chance ou coragem de viver a vida por completo. Harper não tinha a segurança, a confiança de que poderia ser possível juntar esses dois mundos. E com isso ela errava novamente. Voltar para aquele ambiente familiar trouxe barreiras antigas para a personagem. É perceptível a diferença no modo de agir, de falar e de se expressar quando ela está ao redor das pessoas do passado, entre amigos e familiares, como uma forma de proteção, e quando ela se fecha novamente, tenta manter os dois mundos separados, ela exclui a mulher que mais ama. O filme introduz inúmeros problemas desnecessários para manter a trama de desencontros de Natal, mas, ao mesmo tempo, traz questionamentos válidos sobre as personagens e sobre a vida de pessoas LGBTQIA+.

Mas será que Abby e Harper devem mesmo continuar como casal? Para muitos, Abby merece alguém melhor, diminuindo Harper a pessoa errada da história. Ninguém está errado, apenas vivendo realidades e momentos diferentes. Harper tem dificuldade de lidar com as situações e acaba agindo da pior maneira, mas mesmo assim ela não é obrigada a se assumir. Isso é um processo e para que esse processo ande, ela precisa primeiro lidar com ela mesma e com os seus medos e conflitos internos.
Existe um diálogo no longa-metragem entre Abby e John (Daniel Levy) que define a importância da produção e da jornada de Harper, a experiência de sair do armário é diferente para todos e não é porque uma pessoa não está preparada para isso em tal momento que ela nunca vai estar, e isso não diminui o amor da Harper pela Abby. Cada um tem o seu tempo.
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Harper não estava preparada mesmo percebendo que ela está afastando Abby, ela se sente bloqueada, um sentimento que a consome e a faz criar novas barreiras. A ansiedade da personagem ultrapassa a tela e consegue transmitir uma realidade tão próxima até chegarmos no pior momento para uma pessoa que não chegou ainda no seu momento, o momento em que ela é arrancada do armário.
Só quando ela percebe que realmente vai perder Abby é que ela consegue falar as palavras, que ela consegue perceber que existe algo que é maior do que tudo isso e que mesmo que ela não tenha o apoio da sua família, ela tem Abby. Harper e Abby poderiam não terminar juntas, mas não porque Abby merecia alguém melhor do que Harper e sim por elas se encontrarem em momentos diferentes de suas vidas, e isso não é culpa de ninguém.

Mesmo com os problemas que o filme pode apresentar, a jornada da Harper Caldwell ainda é algo necessário, uma discussão que nem sempre é explorada no amplo tema de sair do armário. Muitas vezes, se assumir para os outros e para a família é visto como algo que deve ser apressado, mas cada um tem a sua realidade e o seu tempo. Existem pessoas que passam a vida inteira presas em uma vida dupla, enquanto outras não precisaram nem pensar sobre. Uma história não diminui a outra e não deve ser julgada inferior por causa disso.