No mundo do entretenimento, seja na literatura ou no cinema, é raro uma mulher ter sua vida contada em uma obra biográfica, uma mulher LGBTQIA+, mais ainda. Quando isso acontece, em geral, é a história de uma diva norte-americana bela e sedutora com milhões de fãs. Ao fazer uma comparação com o número de biografias sobre homens e o leque de profissões dos mesmos, é fácil perceber um apagamento da história das mulheres, de seu papel e impacto na sociedade ao longo dos séculos. E esse dado é ainda mais esmagador para as que se relacionavam romanticamente com outras mulheres.
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Entretanto, com o aumento da conscientização da sociedade acerca de diversos grupos supostamente minoritários, suas existências têm ganhado cada vez mais espaço na mídia. E assim, a indústria audiovisual trouxe para o grande público a oportunidade de conhecer duas mulheres sáficas pioneiras, corajosas e que quebraram barreiras durante suas vidas, elas são Juana Inés de la Cruz e Benedetta Carlini de Vellano.
Essas duas mulheres tiveram grande destaque em suas comunidades, a primeira no México e a segunda na Itália, coincidentemente no mesmo século, o 17. E, ao contrário do que se pode pensar do alto do século 21, foi justamente a vida eclesiástica que proporcionou as oportunidades que as fizeram ganhar notoriedade, pois ambas viveram em conventos durante quase toda a vida.
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Juana Inés de la Cruz foi uma intelectual autodidata dona de uma mente inigualável. Aos 13 anos sabia grego, o idioma asteca náuatle e dava aulas de latim para crianças menores. Aos 16 anos pediu para que sua mãe a deixasse entrar para uma universidade disfarçada de homem, pois mulheres não podiam estudar, mas tendo recebido uma negativa, continuou seus estudos por conta própria. Alguns anos depois, sendo dama de companhia na corte da Nova Espanha, impressionou juristas, teólogos e filósofos que testaram seus conhecimentos sobre os mais diversos assuntos, o que lhe rendeu fama por todo o México. Já na vida adulta, apesar dos diversos pedidos de casamento, ela escolheu a vida religiosa, pois sabia que somente ali poderia dedicar a sua vida ao conhecimento. Nesse tempo, ela pôde se debruçar sobre a escrita, tornando-se uma das maiores poetas de seu tempo, com temas voltados à liberdade e questões de sua época, como no poema “Hombres Necios” (Homens Estúpidos) onde defende que as mulheres devem ser respeitadas e critica o machismo da sociedade. Por seu grande destaque intelectual manteve relações próximas com a corte e assim, acredita-se que manteve um caso amoroso com a vice-rainha María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga, a quem a poeta dedicou vários poemas de amor. E foi justamente a vice-rainha, a primeira a publicar os poemas de Juana.
Benedetta Carlini de Vellano foi uma freira italiana que ganhou destaque no convento em que vivia ainda muito jovem. Tendo adentrado a vida monástica aos nove anos de idade, aos 23 passou a ter visões místicas em que dizia ter contato com Jesus Cristo, São Paulo e anjos, o que foi considerado como blasfêmia e tido como suspeita de possessão. Essa situação fez com que as irmãs colocassem outra freira para lhe acompanhar em todos os momentos. A irmã se chamava Bartolomea e as duas desenvolveram um caso amoroso que durou muitos anos. Aos 30 anos Benedetta se tornou abadessa do convento e por causa de suas visões sobrenaturais foi interrogada diversas vezes por membros da Igreja, pois era o auge da Contrarreforma, que queriam atestar a veracidade de tais visões, e assim foi descoberto seu caso amoroso, considerado pelo cristianismo como um ato pecaminoso. Por esse motivo ela foi destituída de seu cargo de abadessa e mandada para a prisão, onde passou o resto de seus dias. Sua existência é importante, pois os arquivos da investigação realizada contra ela são alguns dos primeiros registros de relações amorosas e sexuais entre mulheres, dentro dos arquivos da Igreja Católica, algo de grande importância hoje para os estudos da história das mulheres LGBTQIA+.
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As vidas de Juana Inés e Benedetta ganharam tanto destaque e importância que chegaram até nós no século 21, e tiveram adaptações no meio audiovisual. A biografia da intelectual mexicana ganhou vida na série televisiva de sete episódios “Juana Inés”, produzida em 2016 por Bravo Films e Canal Once, escrita e dirigida por Patricia Arriaga Jordán, com a atriz Arcelia Ramírez como Juana Inés. E mais recentemente, em 2021, foi lançado o filme “Benedetta” dirigido e co-escrito por Paul Verhoeven, com base no livro “Atos Imodestos”, de Judith C. Brown, estrelado por Virginie Efira como Benedetta e Daphne Patakia como Bartolomea. As duas produções merecem ser conhecidas, consumidas e exaltadas como as obras pioneiras que são, para que assim as vidas de mais mulheres sáficas de destaque possam ser contadas e retiradas dos becos obscuros do esquecimento.