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A representatividade nos 60 anos de Doctor Who

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A série de ficção científica a mais tempo no ar, “Doctor Who”, nos últimos meses teve temas muito comentados por fãs e em sites de notícias relacionados a representatividade de mulheres LGBTQIA+; declaração romântica de uma personagem pela Doctor (e sua reciprocidade) e o casting de uma mulher transgênero para participar do episódio especial de 60 anos da série. Mas, por que isso está com tanto destaque e é tão importante?

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“Doctor Who” conta a história do (ou da) Doctor, um alienígena de aparência humana com dois corações, que viaja pelo tempo e espaço resolvendo problemas e salvando as pessoas, com sua nave, uma icônica caixa de polícia britânica chamada Tardis. Esse personagem não viaja sozinho, estando sempre acompanhado de seus companions, pessoas que chamaram a sua atenção em alguma de suas viagens e que tem interesse em aventuras inimagináveis. Um ponto muito importante da história é que o Doctor passa de tempos em tempos por um processo chamado de regeneração, que o faz mudar de aparência e até personalidade (ótimo jeito para manter uma produção acontecendo por décadas) e assim novos ciclos da narrativa se iniciam.

Indo ao ar pela primeira vez em 1963, a série é dividida em era clássica, com as temporadas que passaram de 1963 a 1989, e era nova, de 2005 até atualmente, com um filme no meio dessas duas eras. Assim, “Doctor Who” é a série britânica mais icônica, fazendo parte do imaginário geek, e com todas as mudanças e inovações tendo grande impacto para uma perspectiva de ficção científica e da importância de se atualizar clássicos.

A questão da representatividade então vem à tona, se mostrando necessário que a trama saísse do básico de apenas pessoas brancas como personagens importantes, de mulheres apenas no papel de companions ou participações especiais, e claro, de personagens cisheteros.

No quesito de representação feminina, é importante dizer que mesmo nessas perspectivas de companheiras do Doctor, buscou-se criar personagens multidimensionais e fortes, que eram necessárias para a história. Isso não era, no entanto, suficiente, e dois pontos de virada foram muito importantes. O primeiro aconteceu em 2014, quando um dos maiores vilões da série, Master, um alienígena da mesma raça do Doctor, regenera para uma mulher, Missy (Michelle Gomez) (e isso ser um fato amplamente aceito na história da produção, sem nenhum estranhamento, mesmo não tendo ocorrido antes). Então, alguns anos depois, em 2018, o próprio Doctor regenerou e se tornou uma mulher, sendo interpretada por Jodie Whittaker. Essa última mudança é claro que gerou muita discussão, sendo vista como positiva por finalmente, depois de 55 anos, a Doctor ser uma mulher e também hate pelos fãs mais puristas (sempre se baseando em discursos machistas).

Jodie Whittaker é a 13ª Doctor

Quanto a representação racial, o maior destaque de mudança da série para dar espaço a personagens não brancos se pode dar para a personagem Martha Jones (Freema Agyeman, a lindíssima Amanita de “Sense8”), primeira companion negra do Doctor, em 2007; ela era uma médica que realizou parte de suas aventuras sozinha, inclusive salvando o mundo. Já mais recentemente tivemos, em 2017, a personagem Bill Potts (Pearl Mackie), e em 2018 os personagens Ryan Sinclair (Tosin Cole) e Yasmin Khan (Mandip Gill). Tanto Bill quanto Yas são importantes também em um outro tipo de representatividade, comentado no próximo parágrafo.

Em 2022, uma notícia importantíssima foi divulgada: Ncuti Gatwa, o Eric de “Sex Education”, será o próximo Doctor, se tornando assim o primeiro Doctor não branco a existir (um comentário importante é que em alguns episódios mais recentes da série uma Doctor negra, interpretada por Jo Martin foi apresentada. Ela, no entanto, ainda não se encaixa na timeline da série e nem tem sua origem explicada, não sendo ainda contada entre as regenerações da Doctor).

Ncuti Gatwa, da série “Sex Education”, será o 14ª Doctor

Outra notícia divulgada nos últimos meses e muito comentada é a da participação de Yasmin Finney, a Elle de “Heartstopper”, que é uma mulher trans e negra, no episódio especial de 60 anos, outro grande marco representativo. E então, como personagens LGBTQIA+ são apresentados em “Doctor Who”?

Para se iniciar esse tema é importante lembrar que em 1963, quando a série iniciou, era ilegal na Inglaterra e País de Galês, dois homens estarem em um relacionamento amoroso (curioso que essa lei não se aplicava oficialmente à mulheres). Assim, personagens LGBTQIA+ não eram representados de forma alguma na série. A partir da década de 80, 20 anos do início da produção, havia alguns detalhes sutis relacionados a temática LGBTQIA+ foram adicionados, mas nada de real importância. Com a produção parando em 1989, só a partir de 2005 que as coisas começaram a mudar.

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Para iniciar as mudanças, o primeiro roteirista da nova era de “Doctor Who”, Russell T. Davies, também foi roteirista nos anos 90 da série “Queer as Folk”, produção em que, inclusive, um dos personagens era um homem gay fã de “Doctor Who”. Assim, detalhes da temática LGBTQIA+ começaram a aparecer nas temáticas de fundo. A primeira personagem LGBTQIA+ da série é apresentada logo em 2005, em uma “vilã” (apesar do termo ser simplista para a história), Lady Cassandra, a última humana viva no fim da Terra, sobrevivendo basicamente como um pedaço de pele, e que fala que quando jovem tinha sido um menino.

O próximo personagem representativo a aparecer é muito mais importante, Capitão Jack Harkness (John Barrowman), um viajante no tempo que se torna companion do Doctor por um tempo, e depois tem até sua própria série. Sua sexualidade na série é mostrada como omnisexual, sendo descrito que Jack se sente atraído por humanos e aliens, independente de suas características e gênero, não tendo nenhum problema em ser aberto quanto a isso. Em 2008, é apresentada River Song (Alex Kingston), personagem que se torna esposa do Doctor, e que relata ter sido casada outras vezes com pessoas de diversos gêneros, com sua identidade sexual nunca recebendo um nome. A mesma coisa acontece com a companion Clara Oswald (Jenna Coleman), que não é confirmada como bissexual, mas tem namorados e deixa implícito que teve relacionamentos com mulheres (ou ao menos beijou Jane Austen).

Alex Kingston, atriz que dá vida a personagem River Song

No ponto de vista de casal, duas personagens que fazem participações especiais, entre 2013 e 2014, são Madame Vastra (Neve McIntosh), uma guerreira alienígena com aparência de lagarto, e Jenny (Catrin Stewart), uma humana da era vitoriana, que são casadas e vivem normalmente suas vidas no século 19.

Finalmente, em 2017, somos apresentada para a primeira companion que tem sua sexualidade nomeada de forma clara e usada como parte da história: Bill Potts, uma mulher lésbica e negra, que em seu primeiro episódio já tem uma história que se guia pelo fato dela ser apaixonada por uma mulher. Na série, sua sexualidade, infelizmente, é invalidada por sua tia (único familiar vivo) e o fato de ser uma mulher negra é um problema em contextos que viajam para tempos nos quais a escravidão ainda existe, no entanto, o Doctor a respeita, apoia e protege, falando em um dos episódios que ela é uma das humanas que faz valer a pena tudo o que fazem.

Bill Potts (Pearl Mackie), a última companion do 12º Doctor

Por fim, recentemente, tivemos mais uma adição à lista de personagens LGBTQIA+, Yasmin Khan (Mandip Gill), companion da Doctor de Jodie Whittaker desde 2018, uma mulher não branca, de família de origem paquistanesa. Apesar de não ter sido claramente falado qual sua orientação sexual, nos episódios entre 2021 e 2022, Yaz declara ser apaixonada pela Doctor, e em uma conversa posterior, a Doctor demonstra que os sentimentos são recíprocos. Apesar dessa vitória, várias críticas são possíveis para essa nova revelação. O primeiro ponto é na conversa entre as personagens ficar claro que um relacionamento não vai acontecer, o que se liga diretamente ao segundo ponto, que é de finalmente dar aos fãs algo que era pedido desde o início das temporadas com as duas personagens (a química sempre esteve lá) quando falta apenas um episódio para o elenco todo ser trocado e um novo ciclo se iniciar.

Mandip Gill como Yasmin Khan

“Doctor Who” ainda tem muito a apresentar e a melhorar no quesito representatividade (e, às vezes, no quesito roteiro e efeitos especiais também rs), no entanto, as mudanças são perceptíveis e conseguir trazer mudanças como essas para uma série de 60 anos, com muitos fãs conservadores, é uma vitória.

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No dia 21 de Outubro será exibido no Reino Unido o último episódio especial com a Doctor de Jodie Whittaker, ainda sem previsão de estreia aqui no Brasil.

No Brasil, apenas a 13ª temporada de “Doctor Who” está disponível pelo catálogo da plataforma de streaming Globoplay.

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